Marina Saleme
Para este novo Radar nos inspiramos em formas lúdicas, cores e memórias. Marina Saleme é a nossa artista da vez. Deixe-se guiar por este caminho intuitivo que ela nos oferece com belas descobertas. Ver e vestir a sua arte
Vai passar
Tarde de terça-feira de carnaval. Estou sozinho aqui no Studio e começo a escrever este texto para o jornal aQuadra. Devo escrever algo sobre São Paulo em 2030. Absolutamente nada me vem à cabeça, que está impregnada do trágico momento pandêmico e político em que vivemos. Alguns minutos de muito silêncio e introspecção, pensando um pouco na vida e no que escrever. É raro conseguir fazer isso por aqui e, como era de esperar, esses minutos duram pouco. Um pequeno bloco de carnaval está passando aqui na frente. Vou até a janela. Estão se dirigindo para não sei onde. Não é nada comum nesta pandemia qualquer indício de carnaval. Na frente, brilhando com sua roupa coberta de lantejoulas pretas, uma linda morena fantasiada de bailarina executa exercícios de balé clássico, sim, de máscara, mas cirúrgica. Logo atrás, bem no centro da rua, simetricamente, seis mulheres nuas, com delicados véus pretos cobrindo suas cabeças, andam compassadamente carregando um caixão negro. Tem algo escrito que não consigo ler, mas consigo imaginar. Seguindo o cortejo, vinte pierrôs, de preto e detalhes dourados, que muito me lembram os do Triadisches Ballet de Oskar Schlemmer, seguem tristemente sambando. A seguir, ditando o ritmo, uma pequena orquestra de anões vestidos de surrados smokings tocam desafinados na tuba, na flauta, no trompete e no fundamental pandeiro, “Vai passar”, de Chico Buarque. Atrás deles e finalizando o bloco carnavalesco, dois homens idênticos, muito altos e magros, fantasiados de padre, espalham a fumaça e o cheiro do incenso pela rua, num ritual de purificação. Está bem quente lá fora, cai uma fina garoa, que se mistura com a falsa neblina. Ninguém os observa das janelas dos prédios em quarentena, ou melhor, consigo ver somente a cantora de ópera entreolhando por uma pequena fresta na cortina do quarto andar. O que se passa com a minha diva do quarto andar? Com olhar depressivo, ela fecha a cortina. A cidade está vazia e irreconhecível.
Cai uma lágrima dos meus olhos, estou triste hoje, mas daqui a pouco estarei melhor, vai passar!
Carros voadores?
Se por um lado carros voadores ainda soam absurdos, Blade Runner (1982) vislumbrou o futuro com seus mercados de comida e eletrônicos no térreo dos arranha-céus. As cenas em que o “Caçador de Androides” persegue replicantes em sujas e caóticas ruas de um longínquo ano de 2019 justamente representavam e exacerbavam o presente. Ao olhar para o presente, Ridley Scott previu o futuro.
Não consigo imaginar São Paulo daqui a nove ou dez anos senão como ela é hoje, com suas qualidades e problemas radicalizados e exagerados. Áreas centrais caóticas, cheias de vidas, com pessoas de todos os lugares do mundo passeando pelo mesmo espaço, sem nunca se encontrarem. No final do dia, retornam para suas casas, em tediosos bairros residenciais.
Podemos imaginar uma cidade com parques fluviais à beira de águas limpas, permeada por usos mistos e habitação social que trariam uma utilização democrática do espaço urbano. Mas, neste momento, abatido pela pandemia e pelo distanciamento social, me pergunto se isso não seriam apenas carros voadores? Sonhemos com o presente então: uma cidade cada vez mais múltipla e pulsante, viva, como já a conhecemos.
Muros equivocados
Como um dos fundadores da Escola da Cidade, tive a oportunidade de guiar alguns renomados arquitetos internacionais pelas ruas de São Paulo. Eles ficaram admirados com nosso centro e sua arquitetura eclética, sua boa infraestrutura, mas abandonada.
E, no bairro de Higienópolis, diziam nunca terem visto, sequencialmente, edifícios de tão boa e moderna arquitetura.
Fomos passear pelos jardins… Europa, Paulista, América… deslizamos por ruas e alamedas bem planejadas; apreciamos nossos peculiares palacetes de arquitetura eclética. Perguntaram-me o porquê do nome Jardins. Na hora, sem saber como responder, disse apenas que suas mansões dispunham de imensos jardins. Mas eles alegavam não poder ver esses jardins, tão pouco algo como a boa arquitetura de Higienópolis. Queriam saber em que momento os edifícios modernos de Higienópolis tinham sido planejados e construídos, por que deixamos de projetar uma arquitetura do nosso tempo? Onde estavam aqueles arquitetos? Teriam morrido?
Disse-lhes que naquele momento histórico tínhamos uma cultura que desejava construir uma cidade e um país exemplar, moderno. Essa geração deixou-nos esse precioso legado cultural.
As respostas às suas perguntas não caberiam neste espaço, porém é evidente: nossos tão belos jardins estão ocultos. Para que servem tão altos muros? Para garantir privacidade, segurança? Em meus projetos, argumento com os clientes: nós passaremos, mas as casas que construímos ficarão como legado à cidade. Os muros deixaram nossas ruas com um aspecto medieval, desertas e, por serem desertas, mais perigosas. Demos as costas para a cidade. Ficamos mais vulneráveis e perdemos o encanto de nossos jardins.
Rafic Farah
Designer, arquiteto e um dos fundadores da Escola da Cidade.
Ángela León
Nasci em Maiorca, mas sempre morei em Madri, onde estudei design industrial. Ao terminar meus estudos, fui viver em São Paulo por quatro anos. Minha família tinha emigrado para a cidade na década de 50. Escrever o Guia fantástico de São Paulo foi minha maneira de me familiarizar com a cidade e desenvolver afeto por ela. Eu me foquei em ver sua beleza e potencial, precisamente porque às vezes viver em Sampa pode ser duro. Ao mesmo tempo, fiz algum projeto de design e colaborei com o coletivo artístico Basurama em intervenções no espaço público, como os balanços do Viaduto do Chá para a Virada Cultural. Atualmente, moro em Madri e acho lindo o projeto do aQuadra, porque creio que o que mantém vivas as cidades, sua identidade, são os vínculos nos bairros.
O livro, que contém também as ilustrações aqui publicadas, é da editora Lote 42 e pode ser encontrado na loja Così @cosi_home.
Para este novo Radar nos inspiramos em formas lúdicas, cores e memórias. Marina Saleme é a nossa artista da vez. Deixe-se guiar por este caminho intuitivo que ela nos oferece com belas descobertas. Ver e vestir a sua arte
O italiano Fulvio Pennacchi tinha 23 anos e o diploma da Academia Real de Pintura de Luca quando desembarcou no porto de Santos, em 1929. Mas os primeiros anos em São Paulo não foram fáceis. O artista improvisou-se…
Recorte dos anos 1970 até os anos 2000. Anos de viagens incessantes e períodos fora do país. Iniciei uma intensa correspondência com as diferenças estéticas e culturais da América do Sul, da Europa e América do Norte.
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