Vizinhos de ontem e hoje
Bairros. Afinal são importantes. Ao escolhêlos, de certo modo, moldamos nosso destino. Os vizinhos, os centros de compras, o tipo de vida. Ônibus, bondes, bicicletas, táxis.
Bairros. Afinal são importantes. Ao escolhêlos, de certo modo, moldamos nosso destino. Os vizinhos, os centros de compras, o tipo de vida. Ônibus, bondes, bicicletas, táxis.
Tínhamos vindo do Rio de Janeiro, pai, mãe e filha, a deslumbrante mágica do trem e a chegada ao Jardim América, quase esquina da Estados Unidos, com o que viria ser o restaurante D.O.M.
Logo o bairro foi denominado Cerqueira César. Eu devia ter uns 4 anos e, do outro lado da rua, olhei intrigada qual seria minha futura casa, os pés enfiados em um monte de areia de construção geladinha. Passaram-se anos, o primário foi feito ali, havia uma diversidade de imigrantes de toda a Europa que, naquele tempo, chamavam-se vizinhos.
Muitos judeus, ingleses, italianos, alemães e o Santa Luzia rebrilhando como a joia da Coroa. Fazíamos compras marcando despesas no caderno em “vendas”, geralmente de portugueses. Os paladares se abriam para a alcachofra recheada de dona Herminia, o doce de tomate de Conceição, as balas de ovos de Seraphita, as carpas nos tanques batendo a cauda, e cada comida daquelas era um ponto a mais na nossa experiência de outras culturas.
E o Santa Luzia ajudava, todo de madeira trabalhada, vidros biseautés, ensinando e aprendendo com os brasileiros que viajavam e traziam de volta um produto de que tinham gostado para que fosse encomendado. Aprendemos com os estrangeiros que haviam passado por uma guerra que se podia comprar três fatias de queijo e brigar se nos dessem mais. Aprendemos a gostar do creme de leite batido na hora, fresquinho, em uma batedeira desconjuntada. Os brasileiros tomavam gosto por presunto cru, azeitonas diferentes, damascos, castanhas portuguesas, e os estrangeiros iam-se acostumando devagarzinho à farinha e se deliciando com as frutas e o palmito.
Aos meus 11 anos, mais ou menos, a família, com mais um filho, mudou-se para o bairro mais distante do mundo, segundo os amigos. Era a City, que formava o Alto de Pinheiros, ainda com ruas de terra batida e sem iluminação. Logo se gentrificou, encheu-se de árvores, mas que era longe comparado com o Jardim América, era.
Casada, fui para o mesmo bairro, mas andei mais um pouco em direção ao bairro de Boaçava.
Era uma casa feita com pouco dinheiro, mas caprichada em detalhes, feita com amor de menina mimada. Bem diferente dos Jardins, não tinha a Rua Augusta por perto, só a Teodoro Sampaio, mas o pai, previdente, nos fez prometer que só compraria a casa se jamais nos vestíssemos na Teodoro. Sábias palavras.
Para terminar, e para que vocês saibam como era a vida naquele tempo, no dia em que nos mudamos para a casa nova, acordamos com uma campainha forte. Quem poderia ser? Não conhecíamos ninguém. De longe, pelo vão de baixo do portão, pudemos ver uma dúzia surrealista de pezinhos de criança. A porta aberta, eram os filhos de um casal do fim da rua que vinham nos trazer o café da manhã completo. Ah, não se fazem mais vizinhos como antigamente.
Aqui cresceram meus filhos, cercados pelos colégios Santa Cruz e Rainha da Paz. E só tive sossego mesmo quando as vacas da Estrada da Boiada, hoje Diógenes Ribeiro de Lima, pararam de comer o meu jardim da frente, ruminando, calmas, “xô, xô, vaca”, quando o perigo maior, senão o único, eram elas, pacíficas e comilonas.
Nossa vizinha multitalentosa é também, avó, escritora, cronista e colunista de gastronomia do jornal Folha de S.Paulo há 25 anos. Moradora do Alto de Pinheiros, Nina foi uma das primeiras a oferecer bufês gourmet na cidade de São Paulo em seu Ginger Buffet.
Bairros. Afinal são importantes. Ao escolhêlos, de certo modo, moldamos nosso destino. Os vizinhos, os centros de compras, o tipo de vida. Ônibus, bondes, bicicletas, táxis.
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